24 de outubro de 2013

Nem na Ditadura...nem na ditadura?



"Nem na Ditadura se fez isso, nem na Ditadura se teve coragem de...".

A intenção aparente e profunda é, provavelmente, desnudar o autoritarismo de Cabral, Paes, mesmo da Dilma, pela via da comparação. Mas a ambiguidade...

É preciso a cautela do historiador aqui: entre 1964-1989 não existia celular, câmeras digitais, Mídia Ninja (!), muito menos a cinemania generalizada atual. "Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça" era coisa incipiente... Imagina-se então quantas arbitrariedades sem testemunhas ou provas...? (Imagine mesmo); a "facilidade" de se debater ideias, em público ou não? de se manifestar? (Se hoje os Black Bloc's se mascaram, os militantes de outrora faziam até cirurgias!). Prenderam manifestantes pacíficos na porta da Câmara e lançaram a lei de organização criminosa? No regime civil-militar prenderam todo mundo do Congresso da Une, botaram fogo na sede, tinham a Lei de Segurança Nacional! Além disso, o Brasil tinha uma população menor, menos de 100 milhões de pessoas (hoje estamos no dobro...), nem era uma sociedade tão urbanizada assim  - sabemos que, para citadinos ao menos, uma indigesta verdade é que o que se passa no mundo rural tende a ser mais fácil de ignorar.

Hoje - desde fins da década de 1970 na verdade - pulula a questão GLBTT (legitimando suas causas aos poucos), o tema do aborto, do multiculturalismo, da diversidade étnica e religiosa...questões de minorias nem por isso menores! Até direitos sobre biografia, propriedade intelectual e artística estão sendo revistos. Em todos os casos com argumentos progressistas e outros retrógrados. E aí o pessoal cita o "lado negro da força" dizendo "Nem na Ditadura tiveram a coragem de...". Ora ora...

 Numa sociedade democrático-liberal - teoricamente ao menos - assiste-se ao debate e confronto permanente de ideias, projetos, concepções de existência. Direita, esquerda, centro, os extremos tendem a ser marginalizados. O cidadão médio é um eclético político. Há ainda (in)felizmente uma escalada na "judicialização da vida", uma espécie de sociedade litigiosa em que tudo pode virar assunto de "justiça" e de (sempre novamente) adiados julgamentos. Normal, se pensarmos que a disputa judiciária é um prolongamento da disputa política ou militar (e vice-versa). Fazemos política o tempo todo, taí uma verdade dificilmente (só pra não dizer categoricamente...mas acabo de dizê-lo...) contestável [Aristóteles, rest in peace]. Lembremos ainda que os ditadores como Getúlio e os presidentes militares se diziam defensores da democracia contra o "perigo vermelho". Logo, Ditadura é uma acusação e um conceito (legítimo!) da oposição.

A frase do título do post é ambígua e tende a tornar o passado estático (como se já soubessem na época o final dele), ou como se todos no período tivessem a consciência plena de viver sob um regime ditatorial, quando é da astúcia do político dissimular suas intenções e quem é de verdade... Inclusive não vemos nostálgicos dela? "Naquele tempo pelo menos tinha mais ordem, menos corrupção...a educação pública era melhor (!)...[prosseguem os suspiros melancólicos]". Quem nunca ouviu isso?

Compreensível, uma sociedade militarizada dá a falsa sensação de ordem e de incorruptibilidade, de moralidade pública, exatamente na mesma proporção da ausência de transparência, de diálogo (uma ditadura está mais para um monólogo) e de rápidas decisões, ao contrário dos processos democráticos sempre necessariamente lentos...e não raro abrindo caminho à impunidade, é forçoso admitir. Exatamente porque você não pode reclamar parece que não tem reivindicações...soa tudo bem!

Acho, só acho que o pessoal do Clube Militar deve adorar quando ouve a tal frase "Nem na Ditadura fizeram isso...". Percebem algo como "não eram tão ditadores assim...", deve dar até certa inveja do Cabral! Ou servir de colírio para a memória...Na falta, um Black Tie resolve.

"Nem na Ditadura"... nem na Ditadura eles se assumiam ditadores! Eram salvadores da democracia ora essa.

Walter Andrade