Com prudência pretendo dizer minhas palavras sobre a tragédia que ocorreu em Realengo, ou melhor, não tanto sobre a tragédia em si - já descrita pelo jornalismo - mas de assuntos que a circundam, ou que se ocultam por trás da mesma.
Nesse momento duro é necessário não perdermos a calma e a razão. Isto para que não sejamos levados pela inserção oportunista de velhas-novas plataformas de segurança mais rígidas e disciplinares. Seguem os exemplos.
1) Volta do debate sobre a proibição de venda de armas a civis.
Um pouco de pensamento nos leva a perceber a falácia do argumento: tal possibilidade de proibição de vendas de armas incide apenas sobre a aquisição
legal das mesmas, lei que já foi rejeitada por plebiscito recentemente. Ora, para a aquisição legal de armas é necessário passar por exames psíquicos - do qual provavelmente o assassino não sairia aprovado - entre outras burocracias que seria ocioso citar aqui. Por outro lado, deve ser um direito do cidadão "são" defender-se legitimamente de atentados a sua residência ou vida, direito constitucional em democracias. A proibição de que civis possuam armas é característica histórica de regimes ditatoriais e dos mais antigos tiranos, pois assim a sociedade fica mais débil contra os poderes do Estado, possuidor do "monopólio da violência física legítima" (Weber), coisa que devemos desconfiar e criticar, posto que o Estado não é nem nunca fui uma entidade "neutra", e sabemos muito bem o tipo de polícia que temos por aqui. Defendamos a sociedade portanto, através da sociedade, e não somente do Estado. Isto é dito ainda contra certos sociólogos que apareceram defendendo assim o Estado: quando
sociólogos defendem o Estado, é porque há algo errado...
2) "Satã Ghost tem o poder de enfurecer os seres e transformá-los em monstros incontroláveis"
Parece piada ou brincadeira de mau gosto, mas a metáfora tirada de Jaspion cai como uma luva para o que é preciso evitar nesse momento (espero que consiga transmitir isso com delicadeza, para que não pensem que eu estou justificando a tragédia): evitar transformar em simples
monstro ao assassino que, na verdade, foi uma das possíveis - ainda que não prováveis ou recorrentes - consequências nefastas dos problemas de nossa própria sociedade. A começar pelo
bullying pelo qual o rapaz passou durante a idade escolar (passaria muito provavelmente por trote se tivesse ido para uma Universidade), a ausência total de vida social (e não podemos aceitar que se passe a pensar a partir de agora que toda pessoa meio "antissocial" é um provável assassino), a inexistência de auxílio psicológico pelo SUS... Um absurdo que ainda se tome como "luxo" de classes mais abastadas à psicologia, tão importante nas nossas sociedades contemporâneas geradoras de neuroses e problemas psíquicos em alta escala! Pessoas que demonstram tais sintomas precisam de tratamento, não de exclusão ou estigmatização. É muito fácil culpabilizar
por completo o
outro, e nos tornarmos assim
completos inocentes (é claro que as crianças eram sim inocentes do que ocorreu). Fazemos parte de uma sociedade, de uma comunidade social, precisamos ser cidadãos responsáveis e que intervenham na mesma para a sua melhoria, buscando entender os sintomas, os fatos, as mazelas que ocorrem, encontrando suas causas e combatendo-as como médicos antes que policiais.
3) "A miséria do jornalismo"
Os jornalistas da Globo mostraram o quanto sabem sobre a cidade além do túnel rebouças: estereótipos (pra não dizer que não sabem nada). - Como é Realengo? - Não sei... sei que é longe do centro, que fica perto de Santa Cruz (foi a resposta de uma "jornalista" global). Além da teleologia de uma delas, que queria que um psiquiatra afirmasse que poderia se prever 10 anos atrás o assassinato dessa semana, por conta de sintomas apresentados pelo rapaz anteriormente. É muito desconhecimento sobre a cidade (dos seus "apartamentinhos da gávea"), e muita estreiteza de pensamento psicológico...
4) Detector de metais ou PM's nas escolas/universidades
Não é que surpreendentemente o próprio Rodrigo Pimentel foi contra a proposta?! Disse ele muito bem que isso não teria evitado a tragédia, certamente um possível guarda seria igualmente assassinado por alguém tão decidido a fazer o que fez. Por outro lado, é inconstitucional a presença de polícia militar (que é estadual) em universidades federais (só é aceito a existência de vigilantes e/ou de polícia federal ao que me consta). Imaginem nossa PM dando uma dura em estudante dentro de universidade pública? Simplesmente inaceitável.
5) Tragédia
A definição de tragédia - desde o teatro grego - exclui por princípio a ideia de controle e previsibilidade. A tragédia é isto, o lugar do imponderável, do aleatório, da surpresa, do choque, do horror. É duro lembrar disso, mas a tragédia faz parte do mundo humano. Como já dizia em O Poderoso Chefão: "Se a história nos ensinou algo, é que qualquer um pode ser assassinado", especialmente quando o assassino não teme pela sua própria vida.
Espero que os leitores não suponham a indiferença para com a tragédia daquele que vos escreve, a intenção é apenas não cair em clichês direitoides que buscam capitanear o desejo mais sincero de segurança das pessoas em plataformas políticas enrijecidas.
Walter Andrade