16 de agosto de 2011

Sobre Animalidade, Cultura Humana e Arte

 Voltando a "Sobre Herois e Tumbas", do escritor argentino Ernesto Sábato (tinha parado a leitura faltando umas 40 páginas e a retomei agora), não resisti a postar um trecho transcendental da obra, e que ademais dialoga com o post sobre "a lição do sabiá" e com o próprio fato de escrevermos - os autores do blog - contos. Vale a pena a leitura das penas humanas que segue...

"E naquele reduto solitário me punha a escrever contos. Agora noto que escrevia cada vez que estava infeliz, que me sentia só ou desajustado no mundo em que me coubera nascer. E me pergunto se não será sempre assim, que a arte de nosso tempo, essa arte tensa e desgarrada, nasça invariavelmente de nosso desajuste, de nossa ansiedade e de nosso descontentamento. Uma espécie de tentativa de reconciliação com o universo dessa raça de frágeis, inquietas e anelantes criaturas que são os seres humanos. Posto que os animais dela não necessitam: basta-lhes viver. Pois sua existência desliza harmoniosamente ao sabor das necessidades atávicas. E ao pássaro bastam algumas sementinhas ou insetos, uma árvore onde construir seu ninho, grandes espaços para voar; e sua vida transcorre desde seu nascimento até sua morte em um venturoso ritmo que não é perturbado jamais nem pelo desespero metafísico, nem pela loucura. Ao passo que o homem, ao levantar-se sobre as duas patas traseiras e ao converter em machado a primeira pedra afiada, instituiu as bases de sua grandeza mas também as origens de sua angústia; pois com suas mãos e com os instrumentos feitos com suas mãos iria erigir essa construção tão poderosa e estranha que se chama cultura e iria assim começar seu extravio, já que deixou de ser um simples animal, mas não chegou a ser o deus que seu espírito lhe sugere. Será esse ser dual e desgraçado que se move e vive entre a terra dos animais e o céu de seus deuses, que perdeu o paraíso terrestre de sua inocência e não ganhou o paraíso celeste de sua redenção. Esse ser dolorido e enfermo do espírito que se perguntará, pela primeira vez, sobre o porquê de sua existência. E assim as mãos, e depois aquele machado, aquele fogo, e depois a ciência e a técnica irão cavando cada dia mais o abismo que o separa de sua raça originária e de sua felicidade zoológica. E a cidade será finalmente a última etapa de sua louca carreira, a expressão máxima de seu orgulho e a máxima forma de sua alienação. E então seres descontentes, um pouco cegos e um pouco enlouquecidos, tentam recuperar às apalpadelas aquela harmonia perdida com o mistério e o sangue, pintando ou escrevendo uma realidade distinta da que infelizmente os rodeia, uma realidade amiúde de aparência fantástica e dementada, mas que, coisa curiosa, vem a ser finalmente mais profunda e verdadeira que a cotidiana. E assim, sonhando um pouco por todos, esses seres frágeis conseguem erguer-se sobre sua desventura individual e se convertem em intérpretes e até salvadores (dolorosos) do destino coletivo. Mas minha infelicidade foi sempre dupla, porque minha debilidade, meu espírito contemplativo, minha indecisão, minha abulia, me impediram sempre de alcançar essa nova ordem, esse novo cosmos que é a obra de arte; e acabei sempre por cair dos andaimes daquela anelada construção que me salvaria. E ao cair, machucado e duplamente entristecido, acudi em busca dos simples seres humanos".

Walter Andrade

1 comentários:

Bruno Silva disse...

Sei lá, acho que nunca mais vou escrever! Genial! Dialoga também com o post "Da condição humana e outras tragédias"

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